Ao longo de quase 24 anos como servidora pública municipal em Cuiabá, já vivi e presenciei muitas situações que revelam o descaso e a desumanização de quem se dedica ao serviço público. Porém, nada é tão cruel quanto o tratamento dispensado aos servidores que, ao adoecerem ou se tornarem incapazes de acompanhar o ritmo exaustivo da função, passam a ser tratados como “lixo humano”. Essa expressão, por mais dura que pareça, é a única que resume o que ocorre em nossa cidade.
Entra e sai gestão, e o tão prometido discurso de valorização do servidor público nunca sai do papel. Os mais velhos, que dedicaram anos, até décadas de suas vidas ao serviço público, são jogados para escanteio, perdendo espaço para os mais novos, como se toda a experiência acumulada não tivesse valor. A tal “avaliação de desempenho”, uma ferramenta que deveria medir competências e estimular o crescimento profissional, muitas vezes reforça injustiças. Servidores readaptados — que já enfrentam desafios por conta de problemas de saúde — acabam, sem culpa própria, sendo colocados em posições de vantagem nas pontuações, enquanto aqueles que ainda desempenham suas funções no dia a dia são relegados a segundo plano. É uma confusão que só gera mais frustração e indignação.
Essa lógica cruel do sistema não para por aí. Quando um servidor se torna inapto para sua função, o que deveria ser um momento de acolhimento e suporte se transforma em mais um golpe. A pessoa é afastada, transferida de unidade, muitas vezes para locais distantes de sua residência, por não ter a pontuação competitiva e até por ter mais de uma na mesma função readaptada, isso acaba gerando desavença e competição aumentando ainda mais o sofrimento de quem já está fragilizado. Isso, em vez de proporcionar alívio, só intensifica a sensação de abandono e inutilidade.
Na educação municipal de Cuiabá, vivemos situações que beiram o absurdo. A implantação do ponto eletrônico, que, em teoria, traria transparência, virou mais um mecanismo de punição. Servidores que chegam mais cedo para adiantar tarefas — seja na cozinha, na limpeza, na vigilância ou mesmo na sala de aula — não podem usar esse tempo extra para abonar eventuais atrasos. Pior: atrasos mínimos de 15 minutos ao longo de um mês já geram descontos no salário. No ano de 2024, muitos colegas perderam de R$ 60 a R$ 300 por conta disso. Para agravar a situação, vários não sabiam nem ao certo como manusear o aplicativo do ponto eletrônico, incluindo eu, que sempre me considerei uma pessoa relativamente familiarizada com a tecnologia.
E como se isso não bastasse, passamos pelas festas de fim de ano sem salário e sem férias pagas. Alguém consegue imaginar tirar férias sem receber? Pois foi isso que aconteceu com os servidores da educação de Cuiabá.
O que está em jogo aqui não é apenas o tratamento injusto dado por uma gestão específica, mas sim um sistema público emparelhado, comandado com mãos de ferro, que perpetua a desvalorização do servidor. O serviço público é, muitas vezes, cansativo, maçante e até mesmo nojento, dependendo dos gestores que estão no comando. E essa desumanização não se limita ao nível municipal; acredito que a mesma lógica cruel se repita nas esferas estadual e federal.
Para piorar, a ausência de critérios claros que valorizem o tempo de serviço e a dedicação contínua é um erro gritante. Antes, esses critérios existiam e eram uma forma de reconhecer o esforço e o comprometimento de quem dedicou a vida ao serviço público. É urgente resgatar essa valorização para corrigir os buracos do sistema e fazer justiça aos profissionais mais antigos, que estão chegando ao fim de suas carreiras.
O que presenciamos é uma gestão pública incapaz de respeitar e cuidar de seus servidores. Enquanto isso, a saúde mental e física de muitos se deteriora, e, infelizmente, alguns chegam ao extremo de tirar a própria vida.
Essa é uma realidade que precisa mudar. Não se trata de culpar gestores específicos, mas de questionar o sistema falho e desumano que se incorporou à gestão pública em Cuiabá e em tantas outras cidades do país. Servidores públicos não são descartáveis. Eles são a base de uma sociedade que deveria prezar pela justiça e pela dignidade.
Acorda, Cuiabá!
Por Ana Paula Barros, servidora pública municipal e jornalista