LUCAS RODRIGUES
Uma declaração dúbia dada pela epidemiologista Maria Kerkhove, da OMS, causou – e deve causar por um bom tempo – um prejuízo grande às medidas contra o avanço do coronavírus, especialmente no Brasil. A polêmica começou após ela declarar, em coletiva de imprensa, que estudos preliminares “indicam” que dificilmente os assintomáticos poderiam transmitir a covid-19. Após a confusão causada, tanto a cientista quanto a OMS se retrataram para reforçar que a pessoa contaminada que em um primeiro momento não apresenta sintomas, pode apresentar no futuro – não tendo como dizer categoricamente quem é assintomático ou não, sendo todos potenciais vetores de transmissão.
Não foram necessárias mais que algumas horas para que essa declaração fosse divulgada em todo o mundo, e para que passasse a ser usada por grupos políticos e ideológicos como forma de influenciar as pessoas a flexibilizarem o isolamento e as medidas sanitárias – mais do que o brasileiro já tem feito por conta própria. Se você participa de algum grupo de WhatsApp, possui qualquer rede social ou convive com alguém em sua casa ou trabalho (ou seja, se você existe) deve ter lido, visto ou ouvido várias opiniões, montagens e publicações sobre esse tema. E o dano dessa informação, podem ter certeza, será gigante.
A questão que coloco em discussão é: por que uma fala, mesmo depois de retratada, pode gerar tantos prejuízos? Porque as pessoas estão acreditando com tanta força nisso e encarando como um “libera geral” ou “foi tudo uma farsa”? Qual a responsabilidade de quem a proferiu? Qual o risco de divulgar informações inconclusas em meio a uma pandemia?
Vamos por partes, partindo de onde saiu a informação.
1 – A comunidade científica nunca foi tão demandada pela mídia quanto agora. Tivemos outras pandemias nas últimas décadas, mas nenhuma tão global quanto essa, e com centenas de formas de consumir informação, cada vez mais urgentes e em tempo real. Médicos e cientistas não estão acostumados a conceder entrevistas, apenas vez ou outra, de forma muito pontual, sobre assuntos que possuem pleno conhecimento. O jogo virou. Agora, precisam conceder entrevistas o tempo todo sobre um assunto que ainda estão descobrindo. E qual o preparo que possuem, em termos de trato com a mídia? A priori, muito pouco ou nenhum. Estão descobrindo as “manhas” da comunicação com o bonde andando.
2 – O quão perigoso isso pode ser? Basta lembrar que a OMS é a maior autoridade de saúde do planeta e qualquer declaração, protocolo, documento ou orientação sobre o coronavírus terá enorme influência nas medidas adotadas em todos os países, estados e cidades do mundo, assim como na conduta individual de bilhões de cidadãos. Uma informação errada ou uma declaração mal colocada, na prática, significa gente morrendo.
Comunicar mal, no caso da OMS, é ligar uma metralhadora giratória, ou talvez um disparador de ogivas giratório, considerando a quantidade de pessoas que estão sob risco de contrair covid-19 e falecer. É preciso estabelecer protocolos mais sensatos quanto à divulgação de pesquisas em andamento, assim como de medicamentos que podem ou não ser eficazes. Não falo em censurar informações, ou omití-las, mas em avaliar o impacto delas num mundo pandêmico. Já tivemos o precedente da cloroquina como um exemplo claro disso. Fazem estudo dizendo que não serve, depois questionam o estudo, voltam a estudar a substância, e a população fica desorientada. Outros agentes políticos a “vendem” como a cura.
O resultado: cidadãos fazendo festinha, aglomeração, saindo nas ruas sem máscara, contaminando os outros sem medo de ser feliz, porque compraram cloroquina e “não vai dar nada”. Pessoas relaxando o isolamento social e acelerando o contágio, crentes de que a cloroquina irá salvá-las. Depois veio o medicamento Annita. Agora, ambos os remédios estão faltando na maioria das farmácias para aqueles que realmente precisam.
O mundo todo está desesperado por uma vacina, um remédio ou uma solução milagrosa. E isso quintuplica a necessidade de cautela na divulgação de pesquisas inconclusas. A OMS não pode “achar” que algum medicamento funciona ou “acreditar” que assintomáticos não transmitam o vírus, e comunicar isso como se fosse uma informação qualquer. Deve divulgar isso quando possuir elementos concretos para sustentar a informação a longo prazo, evitando o alarde geral.
Se alguém duvida do poder de devastação, faça uma breve pesquisa nas redes sociais, nos comentários dos sites de notícias, nos grupos de WhatsApp e pergunte a opinião de pessoas próximas. Vai se surpreender com a quantidade de pessoas já crentes de que todas as medidas restritivas foram desnecessárias e que é preciso voltar à plena normalidade, entoando a palavra “OMS” como chancela para convalidar o absurdo.
3 – Isso nos leva ao terceiro ponto. Como tanta gente pôde interpretar uma fala dúbia a esse extremo, mesmo depois de uma rápida retratação? Temos que partir da premissa de que a comunicação não é uma linha reta e não ocorre de maneira passiva. Quando alguém (emissor) fala “A”, não necessariamente o ouvinte (receptor) vai entender “A”. Há uma infinidade de variáveis que vão modificar a forma como o receptor irá compreender essa informação. Uma das principais, além do contexto geral, é o estado de ânimo. Se alguém chegar perto de mim e me xingar às 14h, muito provavelmente terei uma reação moderada. Se fizer o mesmo às 11h50, quando estou morrendo de fome e aguardando o almoço, talvez a reação seja menos cortês, ainda que o xingamento tenha sido igual.
Não é diferente a forma como a informação circula neste momento. Não estamos no mundo “normal” e nem no nosso estado de ânimo comum. Estamos tristes, ansiosos, angustiados, tentando manter o controle e a sanidade mental após o mundo virar de cabeça pra baixo. E precisamos de esperança. Diante de milhares de notícias contendo uma desgraça maior que a outra, ansiamos por alguma que nos diga o que queremos ouvir. E o que queremos ouvir? Que vai ter vacina, que vai ter remédio, que as coisas poderão voltar ao normal, que poderemos voltar a abraçar, festejar, circular, passear e fazer tudo o que fazíamos antes.
Desta maneira, falas dúbias jogadas na mídia dando conta que boa parte das pessoas não transmitiria o vírus soam como música para os ouvidos de milhões de pessoas que aguardavam essa benção. É dar comida ao faminto. A neurocientista Tali Sharot descreve esse fenômeno como o poder da confirmação. “Quando fornece novos dados a alguém, a pessoa rapidamente aceita as provas que confirmam suas noções preconcebidas (conhecidas como crenças prévias) e avalia as contraprovas com olhar crítico”.
Levando em conta a tese da neurocientista, a retratação da OMS dificilmente vai fazer com que todas essas pessoas voltem atrás e mudem suas opiniões sobre o assunto, uma vez que a primeira declaração já foi suficiente para gerar milhares de outros conteúdos na internet que irão corroborar a informação equivocada. “A riqueza de informações disponíveis nos torna mais resistentes à mudança, porque é muito fácil encontrar dados em apoio à nossa própria opinião […] Lemos atentamente blogs e artigos que apoiam nossas opiniões e podemos não clicar em links que nos dão uma abordagem diferente”. Sem contar o efeito “bolha” dos algoritmos da internet, que, por si só, já gerariam discussão para outro artigo.
Não estou a isentar a culpa de todas as pessoas que, de forma egoísta, esvaziam as prateleiras das farmácias e continuam aglomerando. Ou daquelas que não compreenderam a mensagem da forma que a OMS divulgou, ou da maneira que a mídia mostrou. Ou ainda daquelas que agem de forma irresponsável, mesmo tendo plena ciência dos riscos. Mas essas pessoas existem, são uma grande parcela da sociedade, e precisam ser levadas em conta na hora de bem comunicar. Porque muitas delas apenas tiveram dificuldade de compreender, leram errado ou foram influenciadas de forma equivocada ou mal-intencionada. E não é razoável que elas – e tantas pessoas ao redor delas – paguem com a vida pela falta de discernimento.
Lucas Rodrigues é jornalista, escritor e pós-graduando em Jornalismo Empresarial e Assessoria de Imprensa.