Retroatividade penal gera insegurança

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Em 22 de junho de 2021, o Supremo Tribunal Federal — STF, por meio de sua Segunda Turma, “entendeu” que a necessidade de representação do ofendido, nos crimes de estelionato, deve retroagir em benefício do réu. Para a Primeira Turma “deste mesmo STF”, no entanto, “a retroatividade da exigência de representação da vítima no crime de estelionato não deve ser aplicada nos casos em que o Ministério Público ofereceu a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019”.²-³
A divergência posta é lamentável e acaba por transformar o Direito — que deveria ser um conjunto de normas executáveis coercitivamente, reconhecidas ou estabelecias e aplicadas por órgãos institucionalizados — em verdadeira “loteria”, sem a mínima segurança jurídica, dado que, para além do direito, o cidadão precisar “contar com a sorte” para ver esse direito reconhecido.
É óbvio que, no campo jurídico, as regras não são imutáveis, e os resultados, pela natureza própria da ciência social, tendem a variar, a depender dos especiais contornos do caso concreto sobre o qual se exige determinada manifestação judicial. Nada obstante, a despeito de não se cobrarem do Direito resultados tão precisos quantos aqueles fornecidos pela matemática, não é dado aos “Pensadores do Direito” ficarem passivos diante de erros crassos, os quais acabam por comprometer a integridade mesma do ordenamento jurídico.
O Direito não é, nem pode ser, “apenas” o que dizem os tribunais, problema que fica evidente se for levada em consideração a problemática da mudança da ação penal nos crimes de estelionato. Ora, se o Direito fosse “apenas” o que os tribunais dizem que é, qual interpretação haveria de ser dada à questão em comento? A norma retroage ou não?
Se não há critérios maiores ou cientificamente mais confiáveis para se averiguar o erro ou acerto de uma decisão, se a ciência do Direito não fornece meios para que se chegue a respostas juridicamente acertadas, pode-se dizer, em nível argumentativo, que um simples jogo de dados seria suficiente para pôr fim à divergência entre a Primeira e Segunda Turmas do STF.
O jogo de dados, a rigor, mostrar-se-ia inclusive mais justo do que a sistemática atual, visto que, após o “lançamento das pedras”, ter-se-ia um “posicionamento jurídico definido”, e os jurisdicionados, a partir de então, teriam um pouco mais de previsibilidade jurisprudencial. Dito de outro modo, a interpretação da norma não ficaria ao alvedrio de “pessoas” que interpretam o Direito como “entendem” que ele deve ser.
É importante acentuar que a temática que motiva o presente artigo sequer demanda, em realidade, algum conhecimento jurídico sofisticado. Todo o oposto. A questão é de somenos complexidade: a alteração do “pacote anticrime”, no que diz respeito à natureza da ação penal no crime de estelionato, alcança o status libertatis do cidadão ou impacta o “direito” de punir do Estado? Se a resposta for positiva, qualquer acadêmico mediano do curso de Direito não hesitaria em dizer que a norma, se mais benéfica, deve retroagir, independemente do diploma legislativo em que esteja prevista, porquanto se trata de “lei processual penal híbrida ou mista”.
Argumentar-se, como se fez, “que não se aplica a retroatividade nas ações penais em que houve oferecimento da denúncia, ‘porque naquele momento o ato jurídico perfeito se consubstanciou’”, é fundamento completamente alheio ao tratamento dogmático conferido à lei penal no tempo. Cuida-se, a toda evidência, de interpretação equivocada, inadmissível por parte de qualquer pessoa que “ostente” um diploma de bacharelado em Direito — que se dirá quando vinda da mais alta Corte do país.
A lamentável divergência está formada: de um lado, o posicionamento dogmaticamente correto, encampado pela Segunda Turma do STF, segundo o qual “a norma que trata da ação penal tem natureza mista (material e processual), por acarretar reflexos nas duas esferas. Portanto, deve retroagir em benefício do réu, devendo ser aplicada em investigações e processos em andamento, ainda que iniciados antes da sua vigência” ; de outro, um completamente errado, defendido pela Primeira Turma, por meio do qual se sustenta ser “inaplicável a retroatividade do § 5º do art. 171 do CP às hipóteses onde o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da lei 13.964/19”. ‘7
O grande problema é: e se a tese que está dogmaticamente equivocada “sair vencedora”, dever-se-á “abaixar a cabeça” e passar dizer que tal posicionamento é o correto, já que o STF disse que assim tem de ser? Qual a força dos conceitos jurídicos e das lições doutrinárias que de há muito trabalham com os critérios interpretativos aplicáveis às chamadas “leis processuais penais híbridas ou mistas”, as quais, a despeito de tratarem de questões processuais ou de estarem inseridas em diplomas processuais, são dotadas de repercussão penal material?
Como recentemente pontuou Lenio Streck, o Direito piora, pois, cada vez mais, o Direito é aquilo que os tribunais dizem que ele é. ‘8
Enquanto todos ficarem à mercê de “posicionamentos pacificados”, de “jurisprudências majoritárias”, de súmulas ou enunciados sumulares de caráter vinculante, o Direito — enquanto ciência — perde sua autonomia e estabilidade e passa a ser a mera “manifestação de vontade” de “alguém dotado de poder”, mesmo que o exercício desse poder se mostre, na prática, atentatório às regras que constituem o Estado de Democrático de Direito, as quais deveriam subordinar não apenas os jurisdicionados, mas também o Estado em si.
Se um dos polêmicos pontos da Lei de Abuso de Autoridade foi a problemática da criação dos chamados crimes de hermenêutica, a pergunta que fica de conclusão é: os cidadãos cujos recursos ou ações autônomas de impugnação, “por azar”, forem distribuídos à Primeira Turma do STF deverão ser criminalizados, ao passo que os  “sortudos” que tiverem os expedientes processuais impugnativos direcionados à Segunda Turma da mesma Corte poderão contar com interpretações mais favoráveis?
A valer essa insegurança jurídica, que tem se tornado cada dia mais comum no Brasil, a questão que se coloca, para finalizar, é: se não existe “crime de hermenêutica”, pode(ria) haver “crime por erro de hermenêutica”?
Concorda-se com Streck: O Direito piora, pois, cada vez mais, o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é, apenas enquanto não mudam de ideia para “desdizer” o que tinham dito.
Filipe Maia Broeto é advogado criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal. Mestrando em Direito Penal Econômico (UNIR/ESP), Especialista em Direito Penal Econômico (PUC/MG), Ciências Penais (UCAM/RJ) e Processo Penal (COIMBRA-IBCCrim).

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