A opressão vivenciada por determinados grupos historicamente inferiorizados e vulnerabilizados não encontra hierarquia, como nos ensina Audre Lorde (2019). A opressão atravessa cada um dos indivíduos na particularidade que lhes é própria. As mulheres, as pessoas negras, pessoas LGBTI, as pessoas pobres. Não se pode desconsiderar a especificidade de cada uma, passando por questões de identidade de gênero, orientação sexual, raça e classe social. Contudo, a luta, sem ignorar as peculiaridades próprias, encontra adversário único no opressor.
É partindo dessa tônica de unicidade no confronto que extraímos do conceito formulado de racismo recreativo um paralelo com a homofobia recreativa.
A homofobia, assim como o racismo, está cotidianizada para a sociedade brasileira. Basta assistir aos noticiários, sair às ruas e manter os ouvidos atentos. Certamente será possível constatar pelo menos um episódio racista ou homofóbico.
Isso porque as condutas cotidianas revelam um modo de viver estruturado sobre bases dessa natureza, como nos ensina o professor Silvio Almeida (2019) na obra intitulada “Racismo estrutural”, desenvolvendo verdadeiramente uma teoria social, como o próprio autor aduz na introdução do livro mencionado, intercambiando o conceito de raça com a filosofia, ciência política, teoria econômica e do direito, evidenciando que o racismo é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade ao longo dos tempos, especialmente a brasileira.
Uma das expressões do racismo é no humor que violenta, faz troça com a imagem sempre suspeita da pessoa negra quando brinca de acusar o negro da sala por ocasião do sumiço de algum bem. Quando atribui a um mal serviço executado a feitura por uma pessoa negra, o chamado “serviço de preto”, tratado no vocabulário popular como um serviço de qualidade ruim.
São infindáveis os exemplos de inferiorização através de ditos populares ou mesmo de piadas prontas atreladas à pessoa preta.
Isso encontra fundamento teórico em Thomas Hobbes (apud MOREIRA, 2019), que aludiu sobre o bem-estar sentido pelos indivíduos quando se deparam com o infortúnio do outro, emanando um sentimento crescente de autoconfiança ao realizar a comparação com àqueles que são retratados em piadas, manifestações culturais de caráter negativo, formulando a partir daí questões sobre a teoria da superioridade, que pode ser observada no caso do exercício do humor como forma de marcar os locais superiores e inferiores dentro de uma sociedade.
Sobre a utilização do humor como forma de expressão do racismo, consubstanciado no que se pode conceber por racismo recreativo, Adilson Moreira (2019) indica que o humor dessa natureza revela uma dimensão de natureza coletiva e social de dado momento histórico.
Portanto, logo de representar pura e simplesmente uma piada inocente, o humor verdadeiramente é capaz de revelar muito sobre a ocupação dos espaços, as hierarquias vigentes e admitidas em determinados momentos históricos.
Aproximando a questão para o campo da homofobia, aqui concebida como toda forma de violência física ou verbal em desfavor de pessoas LGBTI, o cenário não é nada distinto.
A inferiorização a que são submetidas as pessoas LGBTI, em especial os gays, no cotidiano nacional é explícito. Quase sempre que se deseja ridicularizar um homem heterossexual basta chama-lo de “bicha”, “veado”, para logo ouvir do pretenso ofendido algum retrucar agressivo, tamanha sua aversão em ser denominado homossexual.
E tudo isso com o intuito de fazer rir à custa da existência do outro.
Considerando ser o Brasil o país que mais mata LGBTI no planeta e que há 12 anos lidera o ranking mundial de homicídios de pessoas trans (PUTTI, 2020), é inadmissível que se possa compreender piadas atinentes à identidade de gênero ou orientação sexual das pessoas simplesmente como inocentes.
O Brasil, na verdade, perpetua um humor com o negro, gay e nordestino que não tem trégua. A impressão que se tem é que a capacidade criativa é limitadíssima a esses alvos, sempre marcados.
Não é que a sociedade tenha ficado mais chata e que antigamente se brincava com tudo isso e ninguém se ofendia. O fato é que em outros tempos essas pessoas nem imaginariam a possibilidade de ter algum local para falar e serem ouvidas. Os avanços democráticos permitiram pôr em evidência atores sociais invisibilizados, afastados do protagonismo, por exemplo, de novelas, telejornais, propagandas.
Felizmente a realidade tem sido cada vez mais plural e ela vem acompanhada de algo a que Djamila Ribeiro (2019) referencia se tratar do lugar de fala.
É inconcebível que uma pessoa branca seja quem avalie se determinado episódio é ou não racismo. O mesmo com relação a um heterossexual dizer a um LGBTI sobre o que dói ou não nesse outro.
Sobre as dores, as lutas e as cicatrizes de toda uma gente só essa gente pode dizer.
Ainda sobre a importância de atentamente reconhecer e incentivar a produção de narrativas próprias, especialmente para não se correr o risco do perigo de uma única história, nas palavras de Chimamanda Ngozi Adichie (2017), permitindo que o conto ganhe corpo em primeira pessoa, com a realidade característica e capaz de não mais ser re-presentada, mas de verdadeiramente se presentar, se apresentar, estar presente.
É necessário olhar com olhos de querer ver e reconhecer que o racismo e a homofobia recreativa não têm mais espaço dentro de uma sociedade plural, fraterna e solidária, como a que se propõe a brasileira, conforme traçam as primeiras linhas da Constituição Federal de 1988.
Ao outro cabe acompanhar a evolução de pensamentos humanistas, sensível ao outro e reconhecendo nele a si próprio. O outro sempre seremos nós, de outro ângulo.
*Kamila Michiko Teischmann é advogada, conselheira Estadual da OAB-MT, vice-presidenta da Comissão da Diversidade Sexual da OAB-MT, professora universitária e mestranda do Programa de Pós Graduação em Política Social da Universidade Federal do Estado de Mato Grosso – UFMT.